Seu navegador não suporta java script, alguns recursos estarão limitados. A Visão do Ministério Público sobre o Sistema Prisional Brasileiro - Conselho Nacional do Ministério Público

Apresentação

A temática carcerária no Brasil tem sido objeto de preocupação e atenção nos debates mais recentes nos temas de direitos humanos, segurança pública, política criminal e alocação do Estado brasileiro no contexto internacional. A questão carcerária revela paradoxo que chama a atenção: de um lado, a dramática situação estrutural das prisões brasileiras tem sido iterativamente destacada pelos atores do sistema de justiça criminal, com especial destaque ao Ministério Público, a quem incumbe a árdua tarefa de fiscalizar a execução penal; de outro lado, essa iterativa chamada para o tema não tem conduzido a efetivação de políticas de Estado hábeis a mudar esse contexto com a urgência e profundidade desejadas.

A temática prisional toca de perto áreas sensíveis à atuação do Ministério Público. Se, historicamente, a atuação do Ministério Público é consagrada pelo seu protagonismo na promoção em juízo da responsabilidade penal, a tarefa de tornar efetivos os direitos de relevância social com vistas a uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna igualmente se afirma num complexo que se confunde com a própria ideia de Estado democrático de Direito. É central a atuação do Ministério Público nesse contexto porque sua própria razão de existência confunde-se com as promessas constitucionalmente positivadas a serem cumpridas pela República Federativa do Brasil. Por essa razão, a temática prisional guarda centralidade e igualmente é objeto de angústia dos atores do sistema de justiça.

A questão carcerária materializa a assunção de compromisso de efetividade da resposta penal do Estado brasileiro, que é inegavelmente uma das ferramentas de enfrentamento e de resposta ao fenômeno da criminalidade, seja a de cariz violento, seja a de inegável impacto social, como no caso em que as organizações criminosas manifestam a complexa exteriorização de sua ação por meio de ações de cooptação do próprio Estado.

É inegável o quadro desumano e fora da moldura legal que o Estado brasileiro enfrenta em relação ao seu sistema carcerário. Não se cuida de uma constatação ideal ou abstrata: o próprio Poder Judiciário, pela voz do Supremo Tribunal Federal, tem repetidas vezes afirmado, nos últimos anos, que experimentamos um estado inconstitucional de coisas em relação ao nosso sistema prisional. A tônica dos últimos anos, relativamente à atuação dos órgãos centrais do Ministério Público, reside em dar visibilidade a esse quadro indesejado, colocar em xeque as estruturas e explicações tidas como imutáveis a esse contexto e, enfim, propor alternativas para o enfrentamento da questão.

A temática prisional guarda estrita convergência com a preocupação em geral do Ministério Público na área dos direitos humanos. Para além da conformação normativa que o tema dos direitos humanos recebe por meio de convenções, tratados e outros atos situados no âmbito dos sistemas global e regional de direitos humanos, a temática refere-se igualmente aos processos de luta dirigidos à construção de uma sociedade igualitária e sem juízos apriorísticos estabelecidos exclusivamente numa divisão social dos fazeres humanos. Longe de uma aparente contrariedade ou antagonismo, tratar de direitos humanos é justamente ocupar-se dos temas que amparam o reconhecimento da segurança humana como direito socialmente reconhecido e afirmado na ordem constitucional brasileira. Além disso, trata-se de cuidar igualmente para que o sistema de justiça criminal, cuja existência materializa a preocupação última do Estado de monopolizar o uso legítimo da força, não se converta num sistema de violação de direitos. Ao contrário: o sistema de justiça é a fronteira última, embora não única, para a pacificação social.

A questão prisional igualmente guarda correlação com a temática de segurança pública. Dentre as diversas razões que lastreiam essa assertiva, uma assenta-se no próprio discurso justificacionista da intervenção penal do Estado. A resposta penal do Estado, como é de curial sabença, dirige-se à exclusiva proteção de bens jurídicos, à retribuição do mal causado pelo fato criminoso e à prevenção de novos delitos. É a prevenção específica, em seu viés positivo, que atende ao objetivo de ressocialização e reinserção do indivíduo na comunidade. A dimensão negativa dessa prevenção específica refere-se ao efeito que a resposta penal tem de afastar o risco de reiteração delitiva. São atributos que tocam de maneira muito próxima a temática da segurança pública, mas que, decerto, não respondem exclusivamente ao enfrentamento do complexo fenômeno criminoso na atualidade. Se a utilização da privação de liberdade ou de respostas alternativas à prisão não responde exclusivamente à prevenção de delitos, não há como, num contraponto absoluto, ignorar ou negar a aptidão dessa resposta numa compreensão mais ampla e contextualizada dos esforços do Estado dirigidos à pacificação social.

A responsabilidade na construção de um sistema prisional que observe, de um lado, as necessidades daqueles que ali se encontram encerrados e, de outro, as expectativas dos que esperam e confiam na resposta efetiva do Estado ao fenômeno da criminalidade também atende à preocupação de uma política criminal ampla e compromissada com as promessas constitucionalmente positivadas em nosso país. A política criminal do Estado brasileiro, longe de abranger apenas a construção de uma agenda e das modelagens de ações, planos e programas de governo, deve igualmente atentar para a exteriorização da ação estatal levada a efeito pelos atores do sistema de justiça. O Ministério Público, como fiscal da execução da pena e titular exclusivo da ação penal pública em juízo, assume, pois, papel de protagonismo tanto no planejamento quanto na execução das ações político-criminais do Estado. A política criminal, assim, não é a exteriorização da ação do Ministério Público, do Judiciário, das polícias, dos governos ou mesmo do parlamento tomados isoladamente. É a manifestação da ação estatal e, portanto, há de ter sua complexidade e completude devidamente levadas em conta quando tratamos da questão prisional.

Por fim, na afirmação de existência de um encarceramento em massa no Brasil, expressão que já se tornou lugar comum na abordagem da questão prisional, urge que atentemos para a consideração desse tema de maneira responsável e contextualizada à realidade nacional. A expressão “encarceramento em massa” é fugidia e pouco clara. Ora se refere ao estado de superlotação carcerária nos estabelecimentos prisionais, ora se refere ao uso, que alguns afirmam, excessivo da pena de prisão. Num país com números de violência acachapantes como o Brasil, deve-se ter em consideração que o uso da resposta drástica do Estado, que é a pena, ampara-se igualmente no enfrentamento de um quadro emergente e gravoso de desmedida violência.

Assim, como tem noticiado os dados produzidos tanto pelo Ministério Público brasileiro, por meio do CNMP, mas também os dados indicados pelo Poder Judiciário (por seu Conselho Nacional de Justiça) e pelo Poder Executivo (por meio do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional vinculado ao Ministério Extraordinário de Segurança Pública), a temática do encarceramento em massa no Brasil guarda relevo não apenas por seus números absolutos. A atenção deve dirigirse ao fato de que a questão prisional reflete o quadro de desigualdades regionais e assimetrias no modo de funcionamento das forças de segurança pública, do sistema de justiça criminal e, enfim, do próprio dimensionamento da questão prisional. Se há encarceramento em massa no Brasil, essa compreensão só pode derivar do fato de que o Estado brasileiro manifesta o exercício de seu poder punitivo de maneira desigual e assimétrica em relação às diversas manifestações de criminalidade e em atenção às diferenças regionais do país.

O compromisso assumido pelo Ministério Público brasileiro consiste em indicar e promover o destaque à visibilidade do problema. Para além disso, o Ministério Público responsavelmente apresenta-se como instância de discussão e apresentação de alternativas e respostas para o enfrentamento do grave problema que a questão prisional representa na atualidade.

Desse modo, o Conselho Nacional do Ministério Público, por meio de sua Comissão do Sistema Prisional, Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública, promove a edição da Revista “A visão do Ministério Público sobre o sistema prisional brasileiro – 2018”. A Revista tem por objetivo divulgar os dados relativos ao sistema carcerário colhidos por Promotores de Justiça e Procuradores da República por ocasião das regulares inspeções aos estabelecimentos penais; conclamar o Ministério Público brasileiro e todas as demais instituições que compõem o Sistema de Justiça nacional a otimizar o manejo dos mecanismos legais, judiciais e administrativos disponíveis, para a superação da difícil realidade prisional no País; e fomentar a reflexão crítica e a proposição de ações e práticas dirigidas ao aprimoramento do sistema penal brasileiro.

Os artigos ora trazidos à discussão materializam a preocupação e o compromisso dos membros do Ministério Público para transformar essa realidade. No primeiro capítulo, Andrea Teixeira de Souza e Beatriz Fraga de Figueiredo abrilhantam a edição da revista com pesquisa que aborda o desafio de implementação das normas internacionais relacionadas ao sistema prisional. Na sequência, Ana Lara Camargo de Castro, Daniella Maria dos Santos Dias e Isabela Factori Dandaro situam, com brilhantismo, a preocupação de visibilidade da questões de gênero e/ou raça e como esses temas se relacionam com o cárcere. A discussão sobre o encarceramento em massa, tema em si problemático e de pouco aclaramento semântico, foi a tarefa abraçada pelos colegas Alexey Choi Caruncho, André Tiago Pasternak Glitz, Haroldo Caetano, José César Naves da Lima Júnior e José Dutra de Lima Júnior.

O enfrentamento da questão carcerária é problema que reclama criatividade e soluções que ainda não se encontram positivadas. A visualização dessa certeza é encontrada nos trabalhos apresentados por Henrique Nogueira Macedo e Luís Cláudio Almeida Santos, que abrilhantam a revista na temática de perspectivas legislativas em tema de execução penal. Por fim, corajosamente, Glaucia Tavares, Bárbara Graziele Carvalho Brígido, Ilaine Aparecida Pagliarini, Jiskia Sandri Trentin e Marco Antônio Santos Reis discorrem as consequências do reconhecimento de um estado inconstitucional de coisas na atual situação prisional do país. O julgamento em que essa situação foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal em setembro de 2015, por ocasião da concessão de medida cautelar nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347, trouxe consequências normativas, institucionais, financeiras e determinativas de ações estatais que, esperase, impactem efetiva e eficazmente no enfrentamento da questão.

O CNMP, pois, cumpre seu papel de centralidade na afirmação de um Ministério Público brasileiro unido no esforço de aprimoramento de sua atuação e de construção de respostas que, a um só tempo, atentem à preocupação de resguardo da coletividade, e de responsabilização humana das pessoas submetidas ao sistema prisional. Se o tema é complexo e de difícil abordagem, só mesmo a reflexão crítica e responsável de seus destacados atores materializa caminho necessário a avançar nessa temática. A Comissão do Sistema Prisional, Controle Externo da Atividade Policial e Segurança Pública, então, agradece aos prestimosos colegas que generosamente compartilharam suas contribuições pessoais para a divulgação na Revista, ao tempo em que registra o incansável esforço e o notável compromisso de todo o corpo de servidores do CNMP para que a presente edição alcance o público e, enfim, provoque boas reflexões. Boa leitura!

DERMEVAL FARIAS GOMES FILHO
Presidente da Comissão do Sistema Prisional, Controle Externo da Atividade Policial e
Segurança Pública do Conselho Nacional do Ministério Público (CSP/CNMP)

Ano: 2018
Categoria: Publicações
Nome Tipo Formato Tamanho Arquivo
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